terça-feira, 21 de junho de 2011

Paul Giamatti: Um urso quebrando o tabu dos "galãs" do Cinema

O ator Paul Giamatti, protagonista de ''A Minha Versão do Amor'', é a nova estrela na galeria de desajustados sublimes do cinema – onde já brilharam Buster Keaton e Peter Sellers.
Por José Geraldo Couto

Contra todas as probabilidades, Paul Giamatti é um astro. Ganhador da última edição do Globo de Ouro por A Minha Versão do Amor, que entra em cartaz neste mês no Brasil, ele é hoje um dos atores mais requisitados de Hollywood. Em 20 anos de carreira, atuou em quase 70 filmes e séries de TV. Durante boa parte dessas duas décadas, ele ralou como coadjuvante, servindo de escada para colegas quase sempre menos talentosos que ele próprio. Agora, aos 43 anos, é sua vez de subir. Numa época que cultua a beleza reluzente dos corpos sarados, Giamatti brilha pela aparente ausência de atrativos. Baixinho para os padrões norte-americanos (1,74 m), gorducho, com cara de garoto mais sacaneado da turma, sua persona cinematográfica é a do perdedor, numa sociedade impiedosamente competitiva. Talvez esteja aí, nessa flagrante incongruência, uma das explicações para o seu encanto irresistível.

A Minha Versão do Amor ilustra bem a amplitude de recursos desse ator de formação refinada, mestre em artes dramáticas pela Universidade Yale, nos Estados Unidos. O filme de Richard J. Lewis - diretor que fez carreira em seriados - é narrado retrospectivamente e começa quando o personagem de Giamatti, o produtor de televisão Barney, está na faixa dos 60 anos. Amargo, irascível, brutal, temido e odiado por seus subalternos, ele é suspeito, entre outras coisas, de ter assassinado seu melhor amigo e é tratado com crueldade por suas ex-mulheres. Resolve então contar a "sua versão" dos fatos. O que vemos, na sua trajetória, é uma sucessão de tropeços, passos em falso, colisões com as quinas do mundo. Pois Giamatti, de certo modo, faz parte da linhagem dos atores/personagens em permanente desajuste com o ambiente à sua volta e que extraem desse descompasso a sua graça e o seu fascínio.

De Buster Keaton a Rowan Atkinson (o Mr. Bean), passando por Jacques Tati, Peter Sellers e Woody Allen, é grande a lista dos desajustados do cinema. Em todos eles, em proporções variadas, o humor anda lado a lado com certa poesia do desastre e/ou do fracasso. Mas há uma diferença importante: ao contrário dos citados, Giamatti não é propriamente um comediante. O humor brota de suas performances misturado a um amálgama de emoções. A comicidade, quando existe, quase nunca é produto de expressões faciais, pantomimas ou gags físicas, mas de uma espécie de colapso interior, de uma implosão emocional. Nesse sentido, ele se aproxima de outro ator extraordinário, morto precocemente, o italiano Massimo Troisi (1953-1994), de O Carteiro e o Poeta (1994), Splendor (1989) e A Viagem do Capitão Tornado (1990). Em ambos, a inépcia do personagem não desencadeia catástrofes externas: o desastre é íntimo, a vítima é o próprio desajustado. Um humor melancólico, em suma, quase elegíaco.

Diferentemente dos galãs e heróis hollywoodianos "maiores que a vida", Giamatti encarna invariavelmente tipos humanos, demasiado humanos, com quem os espectadores podem se identificar sem dificuldade. Seja no registro fantástico (como em Almas à Venda, 2009, e A Dama na Água, 2006) ou na comédia (Diário de uma Babá, 2007), representando vilões (Mandando Bala, 2007) e vigaristas (A Negociação, 1998), sargentos (O Resgate do Soldado Ryan, 1998) e professores universitários (Desconstruindo Harry, 1997), ele expressa vulnerabilidades, fraquezas e hesitações que são patrimônio de toda a humanidade.

Paul Giamatti sensual após um banho de chuva no filme "Lady in Watter"
NEUROSE E VERBORRAGIA

Em A Minha Versão do Amor - até pelo fato de o protagonista ser um produtor de TV judeu às voltas com ex-mulheres, dilemas morais e dissabores profissionais -, Giamatti faz pensar imediatamente no universo neurótico e verborrágico de Woody Allen (diretor com quem trabalhou em Desconstruindo Harry) e nos personagens não menos neuróticos e verborrágicos dos romances do escritor canadense naturalizado estadunidense Saul Bellow. Mas é possível detectar outra referência importante, ainda que mais sutil, em A Minha Versão do Amor, que seria uma espécie de filme-síntese da carreira de Giamatti: Dustin Hoffman. Além de o veterano ator fazer o papel significativo de pai do protagonista, há uma passagem praticamente decalcada em uma cena célebre de A Primeira Noite de um Homem, primeiro grande sucesso de Hof-fman no cinema. No filme atual, Barney Panofsky corre pela plataforma da estação ao lado da janela do trem em que viaja sua amada. No clássico de 1967 (ano de nascimento de Giamatti), a única diferença é que o protagonista corre ao lado de um ônibus, e não de um trem. Desnecessário lembrar que em seus primeiros trabalhos, e em boa parte de sua carreira, Dustin Hoffman - mais um desajustado - encarnou personagens em doloroso desacordo com o mundo circundante. Paul Giamatti certamente bebeu também dessa fonte.

Mas talvez o filme que ilumine melhor o "fenômeno Giamatti" seja Anti-Herói Americano (dirigido em 2003 pelos norte-americanos Shari Springer Berman e Robert Pulcini), um dos primeiros em que ele deixou de ser coadjuvante. Nessa inusitada comédia, o ator encarna o personagem real Harvey Pekar, medíocre arquivista de hospital que deu uma virada em sua vida ao narrar sob a forma de história em quadrinhos seu cinzento cotidiano, na série de gibis American Splendor. Trazer à luz o homem comum, com suas fraquezas, mas também com sua oculta centelha criativa e seu tesão de viver, como fez Harvey Pekar (e seu ídolo Robert Crumb): não será essa a grande arte de Paul Giamatti?

O sucesso desse ícone do desajuste traz um risco. O excesso de exposição pode levar o público a se enfastiar de Giamatti. Pior: ele pode ser engolfado pela máquina hollywoodiana de transformar todas as coisas em clichês, esvaziando-as de potência. O filme que o ator fez depois de A Minha Versão do Amor chama-se, ironicamente, Win Win ("Vencer, Vencer", "Vitória, Vitória" ou ainda "Vença, Vença"), e nele Giamatti é um promotor que faz um bico como treinador de um garoto-problema que luta vale-tudo. O trailer assusta. É esperar para ver.
 
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Fonte: Revista Bravo online
Por JOSÉ GERALDO COUTO (crítico e tradutor)